maldito transgressor

maldito transgressor
A hipnose é tão aconchegante...
O costume a inércia...
A responsabilidade em ser inteiro adormecida...
A verdade miando lá fora na chuva...
A Televisão que faz o tempo passar tão rápido e confortável...

Não ouço mais os gritos seus
Não ouço mais os gritos meus
Não ouço mais os gritos
Não ouço mais
Não ouço
Não
Ñ
~

HAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Desconhecido - Contato surpreendente

Menina revela pela primeira vez como é estar por trás dos olhos de um autista
Uma sensação de estar dentro de um corpo que você não pode controlar. Segundo Carly Fleischmann, é assim que o autismo a faz sentir. Essa foi apenas uma das revelações sobre o que passa por detrás da mente autista que Carly conseguiu revelar.
A sua história é a seguinte: durante os primeiros 11 anos de sua vida, ela vivia grande parte do tempo imersa em seu universo particular. O diagnóstico de que ela era autista foi confirmado quando tinha 2 anos de idade. Os médicos explicavam que o autismo a impossibilitaria de se comunicar e de ter uma vida normal, além de dizer para os pais da menina que ela tinha um atraso mental que a permitiria chegar somente ao desenvolvimento de uma criança de 6 anos.
 
 
No entanto, seu pai sempre soube que ela estava ali, perdida atrás daqueles olhos. Até que um dia, Carly subitamente se sentou no computador e digitou letras que formaram a palavra HURT (dor, em inglês), seguida de HELP (socorro, em inglês). Ela nunca tinha escrito nada na vida antes. Os pais de Carly então a incentivaram a se comunicar novamente. Se ela quisesse algo, teria que digitar o pedido. Alguns meses se passaram até que ela compreendesse que se quisesse ser atendida, teria que digitar seu pedido.
Quando ela chegou aos terapeutas, ansiosos por avaliar aquele comportamento raro, as primeiras coisas que digitou foi: “Eu tenho autismo, mas isso não é quem sou. Gaste um tempo para me conhecer antes de me julgar.”
A partir daí, Carly começou a fazer algo inédito: revelar as explicações por trás de seu universo único. Ela começou então a explicar mistérios por trás do seu comportamento de balançar os braços violentamente, de bater a cabeça nas coisas ou de querer arrancar as roupas: “Se eu não fizer isso, parece que meu corpo vai explodir. Se eu pudesse parar eu pararia, mas não tem como desligar. Eu sei o que é certo e errado, mas é como se eu estivesse travando uma luta contra o meu cérebro.”
Eis algumas outras revelações sobre o universo autista feitas por Carly:
- A sensação que a obriga a agitar os braços freneticamente é de formigamento ou do braço pegando fogo;
- Ela às vezes tapa os ouvidos e olhos para bloquear a entrada de informações em seu cérebro. É como se ela não tivesse controle e tivesse que bloquear o exterior para não ficar sobrecarregada.
- Ela diz que é muito difícil olhar para o rosto de uma pessoa. É como se tirasse milhares de fotos ao mesmo

Artaud

CARTA ABERTA AOS PODERES, Antonin Artaud

 
E vocês, loucos lúcidos, sifilíticos, cancerosos, meningíticos crônicos, vocês são incompreendidos. Há um ponto em vocês que médico algum jamais entenderá e é este o ponto, a meu ver, que os salva e torna augustos, puros e maravilhosos: vocês estão além da vida, seus males são desconhecidos pelo homem comum, vocês ultrapassaram o plano da normalidade e daí a severidade demonstrada pelos homens, vocês envenenam sua tranquilidade, corroem sua estabilidade. Suas dores irreprimíveis são, em essência, impossíveis de serem enquadradas em qualquer estado conhecido, indescritíveis com palavras. Suas dores repetidas e fugidias, dores insolúveis, dores fora do pensamento, dores que não estão no corpo nem na alma mas que têm a ver com ambos. E eu, que participo dessas dores, pergunto: quem ousaria dosar nosso calmante? Em nome de que clareza superior, almas nossas, nós que estamos na verdadeira raiz da clareza e do conhecimento? E isso, pela nossa postura, pela nossa insistência em sofrer. Nós, a quem a dor fez viajar por nossas almas em busca de um lugar mais tranquilo ao qual pudéssemos nos agarrar, em busca da estabilidade no sofrimento como os outros no bem-estar. Não somos loucos, somos médicos maravilhosos, conhecemos a dosagem da alma, da sensibilidade, da medula, do pensamento. Que nos deixem em paz, que deixem os doentes em paz, nada pedimos aos homens, só queremos o alívio das nossas dores. Avaliamos nossas vidas, sabemos que elas admitem restrições da parte dos demais e, principalmente, da nossa parte. Sabemos a que conclusões, a que renúncias a nós mesmos, a que paralisias da sutileza nosso mal nos obriga a cada dia. Por enquanto, não nos suicidaremos. Esperando que nos deixem em paz.
 
 
Texto surrealista

El mundo físico todavía está allí. Es el parapeto del yo el que mira y sobre el cual ha quedado un pez color ocre rojizo, un pez hecho de aire seco, de una coagulación de agua que refluye.Pero algo sucedió de golpe.
Nació una arborescencia quebradiza, con reflejos de frentes, gastados, y algo como un ombligo perfecto, pero vago y que tenía color de sangre aguada y por delante era una granada que derramaba también sangre mezclada con agua, que derramaba sangre cuyas líneas colgaban; y en esas líneas, círculos de senos trazados en la sangre del cerebro.
Pero el aire era como un vacío aspirante en el cual ese busto de mujer venía en el temblor general, en las sacudidas de ese mundo vítreo, que giraba en añicos de frentes, y sacudía su vegetación de columnas, sus nidadas de huevos, sus nudos en espiras, sus montañas mentales, sus frontones estupefactos. Y, en los frontones de las columnas, soles habían quedado aprisionados al azar, soles sostenidos por chorros de aire como si fueran huevos, y mi frente separaba esas columnas, y el aire en copos y los espejos
de soles y las espiras nacientes, hacia la línea preciosa de los seno, y el hueco del ombligo, y el vientre que faltaba.
Pero todas las columnas pierden sus huevos, y en la ruptura de la línea de las columnas nacen huevos en ovarios, huevos en sexos invertidos.
La montaña está muerta, el aire esta eternamente muerto. En esta ruptura decisiva de un mundo, todos los ruidos están aprisionados en el hielo; y el esfuerzo de mi frente se ha congelado.
Pero bajo el hielo un ruido espantoso atravesado por capullos de fuego rodea el silencio del vientre desnudo y privado de hielo,
y ascienden soles dados vuelta y que se miran, lunas negras, fuegos terrestres, trombas de leche.
La fría agitación de las columnas divide en dos mi espíritu, y yo toco el sexo mío, el sexo de lo bajo de mi alma, que surge como un triángulo en llamas.
Publicado en "La Révolution Surréaliste", N° 2 (1925)
Versión de Aldo Pellegrini

 
 
O Homem-Árvore
(Carta a Pierre Loeb)
Antonin Artaud

O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,
mas de vontade
e árvore de vontade que anda,
voltará.
Existiu, e voltará.
Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,
ingestão, assimilação,
incubação, excreção,
o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam
ao domínio da vontade decisora,
a vontade que em cada instante decide de si;
porque assim era a árvore humana que anda,
uma vontade que decide a cada instante de si,
sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege.
Do que somos e queremos na verdade pouco resta,
um pó ínfimo sobrenada, e o resto, Pierre Loeb, o que é?
Um organismo de engolir, pesado na sua carne,
e que defeca e em cujo campo,
como um irisado distante,
um arco-íris de reconciliação com deus,
sobrenadam,
nadam os átomos perdidos,
as idéias, acidentes e acasos no total de um corpo inteiro.
Quem foi Baudelaire?
Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?
Corpos que comeram, digeriram, dormiram,
ressonaram uma vez por noite,
cagaram entre 25 e 30 000 vezes,
e em face de 30 ou 40 000 refeições,
40 mil sonos, 40 mil roncos,
40 mil bocas acres e azedas ao despertar,
tem cada qual de apresentar 50 poemas,
o que realmente não é de mais,
e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática
está muito longe de ser mantido,
está todo ele desfeito,
mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.
Nós somos os 50 poemas,
o resto não somos nós,
mas o nada que nos veste, se ri, para começar, de nós.
Um organismo de engolir vive de nós a seguir.
Ora, este nada nada é,
não é qualquer coisa mas alguns.
Quero dizer alguns homens.
Animais sem vontade nem pensamento próprio,
ou seja, sem dor própria,
que em si não aceitam vontade de uma dor própria
e para forma de viver mais não encontraram que falsificar a humanidade.
E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos,
fizeram este alambique de merda,
esta barrica de destilação fecal,
causa de peste e de todas as doenças
e deste lado de híbrida fraqueza,
de tara congênita, que caracteriza o homem nato.
Um dia o homem era virulento,
só era nervos elétricos,
chamas de um fósforo perpetuamente aceso,
mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram,
os animais, essas deficiências de um magnetismo inato,
essa cova de oco entre dois foles de força
que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa,
e a vida mágica do homem caiu,
caiu do seu rochedo com ímã
e a inspiração que era o fundo
passou a ser o acaso, o acidente, a raridade, a excelência,
talvez excelência
mas à frente de um tal acervo de horrores,
que mais valia nunca ter nascido.
Não era o estado de paraíso,
era o estado-manobra, - operário,
o trabalho sem rebarbas, sem perdas,
numa indescritível raridade.
Mas esse estado por que não continuou?
Pelas razões que levam o organismo de animal,
que foi feito para e por animais
e desde há séculos lhe aconteceu, a explodir.
Exatamente pelas mesmas razões.
Mais fatais umas do que outras.
Mais fatal a explosão do organismo dos animais
que a do trabalho único
no esforço dessa vontade única
e muito impossível de encontrar.
Porque realmente o homem-árvore,
o homem sem função nem órgãos que lhe justifiquem a humanidade,
esse homem prosseguiu sob a capa do ilusório do outro,
a capa ilusória do outro,
prosseguiu na sua vontade mas oculta,
sem compromissos nem contacto com o outro.
E quem caiu foi quem quis cercá-lo e imitá-lo
mas logo depois com muita força,
estilo bomba,
irá revelar a sua inanidade.
Porque devia criar-se um crivo
entre o primeiro dos homens-árvores
e os outros,
mas aos outros foi preciso o tempo,
séculos de tempo
para os homens que tinham começado
ganharem o seu corpo
como aquele que não começou
e não parou de ganhar o seu corpo mas no vazio,
e não havia lá ninguém,
e lá não havia começo.
E então?
Então.
Então as deficiências nasceram
entre o homem e o labor árido que era bloquear também o nada.
Em breve esse trabalho será concluído.
E a carapaça terá de ceder.
A carapaça do mundo presente.
Levantada sobre as mutilações digestivas
de um corpo esquartelado em dez mil guerras
e pela dor, e a doença, e a miséria,
e a penúria de gêneros, objetos e substâncias de primeira necessidade.
Os que sustentam a ordem do lucro
das instituições sociais e burguesas,
que nunca trabalharam
mas grão a grão amealharam o bem roubado
desde há bilhões de anos
e conservado em certas cavernas de forças
defendidas pela humanidade inteira,
com algumas tantas exceções
vão ver-se obrigados a gastar as energias
nessa coisa que é combater,
vão lá poder deixar de combater,
pois no fim da guerra e esta agora, apocalíptica,
que há-de vir,
está a sua cremação eterna.
Por isto mesmo eu julgo
que o conflito entre a América e a Rússia,
reforçado ele seja a bombas atômicas,
pouco vai ser
ao lado e em face do outro conflito
que vai repentinamente estalar
entre quem preserva uma digestiva humanidade, por um lado,
e por outro o homem de vontade pura
e os seus muito raros aderentes e sequazes mas com a sempiterna força por si.
  • ARTAUD, Antonin. Eu, Antonin Artaud. Lisboa: Hiena Editora, 1988, p. 105-110.
 
 
Artaud questionou e subverteu a noção de LOUCURA em seus textos, como em "Van Gogh: O Suicidado Pela Sociedade".

Seus últimos poemas são sucessões de palavras sem sentido:


potam am cram
katanam anankreta
karaban kreta
tanaman anangtera
konaman kreta
e pustulam orentam
taumer dauldi faldisti
taumer oumer
tena tana di li
kunchta dzeris
dzama dzena di li
farfadi
ta azor
tau ela
auela
a
tara
ila

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Manifesto - Marina Abramovic

Manifesto sobre a vida do artista
Marina Abramovic

1. a conduta de vida do artista:
- o artista nunca deve mentir a si próprio ou aos outros...
- o artista não deve roubar idéias de outros artistas
- os artistas não devem comprometer seu próprio nome ou comprometer-se com o mercado de arte
- o artista não deve matar outros seres humanos
- os artistas não devem se transformar em ídolos
- os artistas não devem se transformar em ídolos
- os artistas não devem se transformar em ídolos

2. a relação entre o artista e sua vida amorosa:
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista

3. a relação entre o artista e o erotismo:
- o artista deve ter uma visão erótica do mundo
- o artista deve ter erotismo
- o artista deve ter erotismo
- o artista deve ter erotismo

4. a relação entre o artista e o sofrimento:
- o artista deve sofrer
- o sofrimento cria as melhores obras
- o sofrimento traz transformação
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito

5. a relação entre o artista e a depressão:
- o artista nunca deve estar deprimido
- a depressão é uma doença e deve ser curada
- a depressão não é produtiva para os artistas
- a depressão não é produtiva para os artistas
- a depressão não é produtiva para os artistas

6. a relação entre o artista e o suicídio:
- o suicídio é um crime contra a vida
- o artista não deve cometer suicídio
- o artista não deve cometer suicídio
- o artista não deve cometer suicídio

7. a relação entre o artista e a inspiração:
- os artistas devem procurar a inspiração no seu âmago
- Quanto mais se aprofundarem em seu âmago, mais universais serão
- o artista é um universo
- o artista é um universo
- o artista é um universo

8. a relação entre o artista e o autocontrole:
- o artista não deve ter autocontrole em sua vida
- o artista deve ter autocontrole total com relação à sua obra
- o artista não deve ter autocontrole em sua vida
- o artista deve ter autocontrole total com relação à sua obra

9. a relação entre o artista e a transparência:
- o artista deve doar e receber ao mesmo tempo
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber

10. a relação entre o artista e os símbolos:
- o artista cria seus próprios símbolos
- os símbolos são a língua do artista
- e a língua tem que ser traduzida
- Às vezes, é difícil encontrar a chave
- Às vezes, é difícil encontrar a chave
- Às vezes, é difícil encontrar a chave

11. a relação entre o artista e o silêncio:
- o artista deve compreender o silêncio
- o artista deve criar um espaço para que o silêncio adentre sua obra
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento

12. a relação entre o artista e a solidão:
- o artista deve reservar para si longos períodos de solidão
- a solidão é extremamente importante
- Longe de casa
- Longe do ateliê
- Longe da família
- Longe dos amigos
- o artista deve passar longos períodos de tempo perto de cachoeiras
- o artista deve passar longos períodos de tempo perto de vulcões em erupção
- o artista deve passar longos períodos de tempo olhando as corredeiras dos rios
- o artista deve passar longos períodos de tempo contemplando a linha do horizonte onde o oceano e o céu se encontram
- o artista deve passar longos períodos de tempo admirando as estrelas
no céu da noite

13. a conduta do artista com relação ao trabalho:
- o artista deve evitar ir para seu ateliê todos os dias
- o artista não deve considerar seu horário de trabalho como o de funcionário de um banco
- o artista deve explorar a vida, e trabalhar apenas quando uma idéia se revela no sonho, ou durante o dia, como uma visão que irrompe como uma surpresa
- o artista não deve se repetir
- o artista não deve produzir em demasia
- o artista deve evitar poluir sua própria arte
- o artista deve evitar poluir sua própria arte
- o artista deve evitar poluir sua própria arte

14. as posses do artista:
- os monges budistas entendem que o ideal na vida é possuir nove objetos:
1 roupão para o verão
1 roupão para o inverno
1 par de sapatos
1 pequena tigela para pedir alimentos
1 tela de proteção contra insetos
1 livro de orações
1 guarda-chuva
1 colchonete para dormir
1 par de óculos se necessário
- o artista deve tomar sua própria decisão sobre os objetos pessoais que deve ter
- o artista deve, cada vez mais, ter menos
- o artista deve, cada vez mais, ter menos
- o artista deve, cada vez mais, ter menos

15. a lista de amigos do artista:
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito

16. os inimigos do artista:
- os inimigos são muito importantes
- o Dalai Lama afirmou que é fácil ter compaixão pelos amigos; porém, muito mais difícil é ter compaixão pelos inimigos
- o artista deve aprender a perdoar
- o artista deve aprender a perdoar
- o artista deve aprender a perdoar

17. a morte e seus diferentes contextos:
- o artista deve ter consciência de sua mortalidade
- Para o artista, como viver é tão importante quanto como morrer
- o artista deve encontrar nos símbolos da sua obra os sinais dos diferentes contextos da morte
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo

18. o funeral e seus diferentes contextos:
- o artista deve deixar instruções para seu próprio funeral, para que tudo seja feito segundo sua vontade
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

ARTE

Arte e síntese
Arte não é só "fazer": é também esperar. Quando o veio seca, nada melhor para o artista que oferecer a face aos ventos, e viver, pois só da vida lhe poderão advir novos motivos para criar. Nada pode resultar mais esterilizante que o encontro de uma síntese, se ela não for, como na vida, a conseqüência de uma análise que se retoma a partir dela. Encontrar uma fórmula é, sem dúvida, uma forma de realização; mas comprazer-se nela e ficar a aplicá-la indefinidamente, porque agradou, ou compensou, constitui a meu ver uma falta de caráter artístico. Como nas ciências positivas, o encontro de uma síntese deve ser o ponto de partida para a busca de outra, e assim por diante, até o encontro dessa grande e única verdadeira síntese que é a morte. E nesse particular eu considero Picasso o maior artista dos nossos tempos.

Picasso é como o câncer às avessas. Sua arte múltipla e prolífica representa uma tremenda afirmação de vida, pois o grande andaluz reformula-se constantemente, até quando varia sobre o mesmo tema. O quadro é para ele como um abismo onde se lança de cabeça, e que uma vez possuído, repele-o fora, como uma mulher violentada. Porque Picasso é dos poucos artistas de qualquer época a quem o abismo teme. O abismo teme esse louco saltimbanco que se atira no vácuo da tela sem saber se vai voltar - e volta sempre. De quantos mais, no nosso século, se pode dizer o mesmo?

Arte é afirmação de vida, em que pese isto aos mórbidos. Afirmação de vida nesse sentido que a vida é a soma de todas as suas grandezas e podridões: um profundo silo onde se misturam alimentos e excrementos, e do qual o artista extrai a sua ração diária de energias, sonhos e perplexidades: a sua vitalidade inconsciente. Tome-se Villa-Lobos, por exemplo. Villa-Lobos é um caudal que se precipita arrastando tudo o que encontra em seu caminho, troncos floridos e paus pobres, ninféias e cadáveres; e, uma vez represado, harmoniza os elementos antagônicos dessa rica contextura em música, seja da maior tranqüilidade, seja do maior tormento - pois tudo faz parte da vida. Como admirar, assim, o artista que se recusa a comer dessa mistura, que desinfeta as mãos para tocá-la, que vive a tomar leite para não se envenenar com suas tintas?

A arte não ama os covardes: e essa afirmação não pode ser mais antifascista. A arte, há que domá-la como a um miúra: e para tanto é preciso viver sem medo. Não a coragem idiota dos que se arriscam desnecessariamente, em franco desrespeito a esse terrível postulado da vida, que ordena uma preservação constante, de maneira a se estar sempre apto para os seus grandes momentos. Esse foi, a meu ver, o pecado maior de Hemingway, e a loucura maior de Rimbaud, que resultou, num, numa morte simulada, temporã, que se antecipou à grande síntese; no outro, numa evasão total, numa recusa pânica a ver o fundo do abismo. Isto sem prejuízo da arte, que ambos exerceram, cada um a seu modo, com gênio e responsabilidade; mas não o gênio e a responsabilidade de um Tolstoi ou de um Picasso. E aí é que está a questão.

É evidente que nenhum prazer poderá jamais substituir uma relação sexual de amor. E é isso o que irrita em certos artistas: eles acabam por se safisfazer solitariamente. Não são capazes, depois de encontrar a síntese, de jogá-la aos peixes, como faz Picasso diariamente, e sair para outra - e não por insatisfação pura e simples: porque sabe intuitivamente que quem acha vive se perdendo, como filosofou Noel Rosa. O negócio é a busca. Aí que a vida incute.

Eu conheço artistas que não se dão mais sequer o trabalho de mergulhar no que fazem, no ato de criar. Trabalham mecanicamente, a partir de um métier adquirido, e elaboram sua obra dentro de esquemas predeterminados por uma síntese atingida. E ficam jogando boxe com a sombra, justificando-se de sua impotência criadora com a auto-satisfação do próprio virtuosismo; aparentemente vaidoso de sua rigidez temática, mas no fundo sabendo que se encontram diante desse fatal impasse em que esbarram sempre os que se recusam às fontes mais generosas da vida e da criação.

Há amigos de Picasso, e a um eu conheci, que o acusam de avarento. Mas certamente não com sua vida e sua arte. Já ouvi toda sorte de histórias a seu respeito: de que guarda a fortuna em casa, dentro de uma arca, e fica a contar e recontar moedas como um usurário de teatro. Histórias absurdas, evidentemente, para quem não deve ter a menor noção do valor do dinheiro; cujos guardanapos e toalhas, que ficava riscando à toa, eram disputados a tapa pelos garçons dos restaurantes onde comia em Cannes. Mas fosse isso verdade - esse horrível pecado que é a avareza - e não seria uma ínfima anomalia neurótica, desculpável, portanto, num homem que criou a maior obra de arte do seu século? Quem fez mais que ele, que revolucionou toda a estética da arte contemporânea e se colocou, chegando o momento, do único lado certo - aquele contra os inimigos do homem e da cultura?

Hoje, beirando os noventa, o velho minotauro, ainda sadio, ainda pintando, pode dizer: "Criei um mundo!" E não, bem certo, porque tivesse sido avaro com sua vida. Fecundou mulheres, teve filhos, fez amigos e discípulos por toda parte. Prodigalizou seu sêmen. Foi um homem.

Vinicius de Moraes




NIETZSCHE, A AFIRMAÇÃO DA VIDA POR MEIO DA TRAGÉDIA

Em 25 de agosto de 1900, morria prematuramente Friedrich Wilhem Nietzsche (1844-1900). Mais de cem anos depois, no entanto, podemos constatar que sua filosofia ainda exerce enorme poder sobre nossas vidas. Não é difícil entender tal fascínio.


Devemos todos nós a Nietzsche uma gratidão sem limites. Sem ele gerações se passariam ainda a insinuar timidamente o que ele afirmou com maestria, com ousadia e com loucura. É a partir dele que foi possível a criação e que a obra de arte pode existir. Eis porque considero a doutrina de Nietzsche como o prefácio, poder-se-ia mesmo dizer prefácio a toda dramaturgia futura. Parece, anacronicamente, que sua obra inteira se encontra subentendida na de um Shakespeare, de um Beethoven, de um Miguel Ângelo.[1]


As propostas de Marx e Nietzsche situam-se nos extremos de ambições similares, como observa Antônio Cândido (1987, p.5): se o primeiro ensaiava transmudar os valores sociais no âmbito da coletividade, o segundo imprimia uma transmutação do ângulo psicológico do homem, determinado pela espécie e processado pela civilização. São atitudes que se completam, uma vez que não é suficiente rejeitar a herança burguesa ao nível da produção e das ideologias, mas, como fez Nietzsche (“psicólogo artista”), é preciso escavar o subsolo pessoal do homem moderno, iluminando-o enquanto indivíduo, “revolvendo as convenções que a ele se incorporam, e sobre as quais assenta a sua mentalidade”.

Sim, extremo limite do individualismo, a criação como um fenômeno humano por meio da arte, a transmutação de todos os valores… Comecemos com seu embate com Sócrates.

Nietzsche examina o fenômeno estranho que constitui a chave da alma de Sócrates, chamada por ele mesmo de o seu demônio. Nele, a sabedoria instintiva só se manifesta para se opor ao pensamento consciente: “Enquanto em todos os homens produtivos o instinto é precisamente a força criadora-afirmativa e a consciência se porta como crítica e dissuasiva, em Sócrates é o instinto que se torna crítico e a consciência criadora (uma verdadeira monstruosidade per defectum!)”. (NIETZSCHE, 1987b, p.12).

Antes de Sócrates, as “maneiras dialéticas” eram proscritas pela boa sociedade, tidas como inconvenientes, observa Nietzsche (1984, p.17-23). Os que, eventualmente, apresentassem suas razões por meio dela eram examinados com uma natural desconfiança: “o que precisa ser demonstrado para ser crido não vale grande coisa”. O “velho feitio”, aos poucos, desaparecia, ninguém era mais senhor de si mesmo, os instintos se revolviam uns contra os outros. Ele, Sócrates, fascinava como dominador de todos os seus “vícios e maus desejos”. Fascinava “como resposta, como solução, como aparência do tratamento que visava a cura indicada em tais casos”. O racionalismo tornou-se forçoso como remédio e, diante disto, não é pequeno o perigo de que outra força nos tiranize: ou sucumbir ou ser absolutamente racional. Neste contexto, qualquer concessão aos instintos e ao inconsciente nos rebaixa.

A degenerescência da filosofia, segundo Nietzsche, aparece nitidamente com Sócrates. Ele inventou a metafísica quando faz da vida“qualquer coisa que deve ser julgada, medida, limitada, e do pensamento [...] um limite, que exerce em nome de valores então considerados superiores (o Divino, o verdadeiro, o Belo, o Bem...” Ora, a própria dialética prolonga este passe de prestidigitador, na medida em que nos convida a recuperar propriedades alienadas. Tudo retorna ao espírito, no processo dialético.

O dionisíaco é a instauração de uma nova existência. Nossa plenitude, com a qual transfiguramos as coisas e a preenchemos de nossa própria alegria de viver. Sim, alegria de viver, apesar do sofrimento:


O profundo grego, extraordinariamente suscetível como ninguém ao mais terrível e ao mais severo sofrimento, consola-se olhando frontalmente para a terrível destrutividade da chamada história do mundo, assim como para a crueldade da natureza, e está em perigo de ansiar por uma negação budista da Vontade. A arte resgata-o, porém, e através da arte a vida. (HOLLINRAKE, 1986, p.216).


José Miguel Wisnik (1987, p.219) observa a dificuldade de tal compreensão: como que uma disposição radicalmente trágica pode dar origem a um posicionamento afirmativo. Sim, por vezes sinto tal incompreensão ao afirmar que tragédia é afirmação da vida, bem como o único sentido da felicidade. O poder da liberdade dionisíaca suscita a transfiguração que garante seu lugar no eterno retorno.

Podemos considerar o eterno retorno, conforme Deleuze (1944, p.77), apesar das premissas antigas, como uma descoberta nietzscheana. Não se encontrava nos antigos, Nietzsche bem o sabia, nem na Grécia, nem no Oriente, a não ser de uma maneira parcelar e incerta, num sentido completamente diverso. O segredo de Nietzsche é que o eterno retorno é seletivo, isto é, não é simplesmente um ciclo, num retorno do todo, num retorno do mesmo, num retorno ao mesmo. Eis a doutrina nietzscheana: “Vive de tal maneira que devas desejar reviver, é o dever (porque tu reviverás, de qualquer modo! [...] Mas que saiba bem para onde vai a sua preferência e que não recue diante de nenhum meio! Aí está a eternidade!”

A crítica nietzscheana à metafísica tem dois sentidos: o ontológico e o moral. Já nos referimos, por alto, ao combate empreendido por ele contra a teoria das idéias socrático-platônicas. Ao mesmo tempo, o filósofo do eterno retorno desenvolvera uma luta acirrada contra o cristianismo. Nietzsche chama-o platonismo para o povo e vulgarização da metafísica uma vez que o mundo terrestre é entendido como provisório e aparente, em detrimento do outro mundo, autêntico e verdadeiro. O cristianismo, como o platonismo, é uma forma acabada de subversão que, apoiada em dogmas e crenças impõe, como virtude, a resignação e a renúncia, negando a vida.

A questão não é a diferença do martírio, mas o sentido. No caso de Dionísio, a vida mesma, sua eterna fecundidade e retorno condicionam o tormento, a destruição. No outro caso, o cristão, o sofrer, o crucificado como inocente, vale como objeção contra esta vida, como fórmula de sua condenação. O homem trágico é forte na medida em que afirma o mais acerbo sofrer. O cristão nega até a sorte mais feliz sobre a terra. Se Dionísio é uma promessa de vida, “o deus na cruz é uma maldição sobre a vida, um dedo apontando para redimir-se dela”. (NIETZSCHE, 1987b, p.174).

A revolta dos escravos da moral, afirma Nietzsche (1987a, p.34), começa quando o próprio ressentimento se torna criador e chega a produzir valores: o ódio encontra compensação numa vingança imaginária. Se moral aristocrática “nasce de uma triunfal afirmação de si mesma”; a moral cristã inverte o golpe de vida afirmador: “opõe de início um ‘não’ a tudo que não é seu. Este ‘não’ é o seu ato criador.” O mundo exterior converte-se no ponto de partida dos valores, e não o mundo interior: a ação torna-se reação.

André Gide que abriu nossas reflexões fecha-as agora, sintetizando afinal o que queremos dizer: “Seria mais simples dizer que todo grande criador, todo afirmador da Vida é forçosamente um nietzscheano”. (MARTINS, 1965, p.4).



MANIFESTO PERFORMANCE ESSENCIAL

"No Teatro Essencial não há personagens. Há "persona", há "in-corporamento" das opções do próprio performer, à vista do público, na atualidade de sua performance. O gesto do performer corresponde a que ênfase deseja imprimir para distanciar-se do convite primordial dos corpos que é descansar na inércia, cair ao solo, juntar-se com a terra, parar."
 
Veja completo:
http://denisestoklos.uol.com.br/trabalhos/manifestos/performer-essencial.htm
 
 
 
 
Richard Bach
 
"Não gosto nada de escrever. Se conseguir dar as costas a
uma idéia, deixando-a miando lá fora no escuro, sem lhe abrir a porta, então
nem pego no lápis. Mas de vez em quando, em vez do miado, ouço uma grande
explosão, como de dinamite, de cacos de vidro e tijolos na parede da frente;
então, alguém passa por sobre os escombros e me agarra pelo pescoço, dizendo
calmamente: 'Não o largarei até que me ponha no papel, em palavras."

sábado, 26 de outubro de 2013

Inspirações - Caos, Inexplicável, Não-controle e Imprevisivel.

Caos: Os Panfletos do Anarquismo Ontológico
Hakim Bey


O Caos nunca morreu. Bloco intacto e primordial, único monstro digno de adoração , inerte e espontâneo, mais ultravioleta do que qualquer mitologia (como as sombras à Babilônia), a original e indiferenciada unidade-do-ser ainda resplandece, imperturbável como as flâmulas negras frenética e perpetuamente embriagada dos Assassinos.[1]

O caos é anterior a todos os princípios de ordem e entropia, não é nem um deus nem uma larva, seu desejos primais englobam e definem todas coreografia possível, todos éteres e flogísticos sem sentido algum: suas máscaras, como nuvens, são cristalizações da sua própria ausência de rosto.

Tudo na natureza, inclusive a consciência, é perfeitamente real: não há absolutamente nada com o que se preocupar. As correntes da Lei não foram apenas quebradas, elas nunca existiram. Demônios nunca vigiaram as estrelas, o Império nunca começou, Eros nunca deixou a barba crescer.

Não. Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe idéias de bem e mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo e a vergonha pela sua condição de profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu amor molecular, hipnotizaram-no com a falta de atenção , entediaram-no com a civilização e todas as suas emoções mesquinhas.

Não há transformação , revolução , luta, caminho. Você já é o monarca de sua própria pele – sua liberdade inviolável espera ser completa apenas pelo amor de outros monarcas: uma política de sonho, urgente como o azul do céu.

Para lograr abrir mão de todos os acentos e hesitações ilusória da história, é preciso evocar a economia de uma Idade da Pedra lendária – xamãs e não padres, bardos e não senhores, caçadores e não policiais, coletores paleoliticamente preguiçosos, gentis como sangue, que ficam nus para simbolizar algo ou se pintam como pássaros, equilibrados sobre a onda da presença explícita, o agora-sempre atemporal.
 
Agentes do caos lançam olhares ardentes a qualquer coisa ou pessoa capaz de suportar ser testemunha de sua condição , sua febre por lux et voluptas. Estou desperto apenas no que amo e até o limite do terror – todo o resto é apenas mobília coberta, anestesia diária, merda para cérebros, tédio sub-réptil de regimes totalitários, censura banal e dor desnecessária.

Avatares do caos agem com espiões, sabotadores, criminosos do amor louco, nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, semelhantes a bárbaros, perseguidos por obsessões, desempregados, sexualmente perturbados, anjos terríveis, espelhos para a contemplação , olhos que lembram flores, piratas de todos os signos e sentidos.

Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entres as paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranóicos. Arrancados da tribo pela nostalgia selvagem, escavamos em busca de mundos perdidos, bombas imaginárias.

A última proeza possível é aquela que define a própria percepção , um invisível cordão de ouro que nos conecta: dança ilegal pelos corredores do tribunal. Seu eu fosse beijar você aqui, chamariam isso de um ato de terrorismo – então vamos levar nossos revólveres para a cama e acordar a cidade à meia-noite como bandidos bêbados celebrando a mensagem do sabor do caos com um tiroteio.



Crianças selvagens são crianças que logo a partir dos primeiros anos de vida passaram a viver em completo isolamento da sociedade; são crianças que depois de pouco tempo de vida se perdem da sociedade, vivem como animais, não falam e não andam como pessoas normais. Tais histórias se originaram de relatos relativamente comuns no século XVIII, que descreviam crianças encontradas no campo, tidas como sobrevivido por circunstâncias especiais, desde os primeiros anos de vida, criadas por animais sem contato com humanos e assim se tornando selvagens.
Uma das referências mais conhecidas provêm do filósofo e estadista franco-suiço Jean-Jacques Rousseau (1712 — 1778) publicada como nota em seu livro Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes), em 1754.
Nesse livro Rousseau ao referir-se à origem do homem e distinções deste primeiro homem e animais, cita os relatos de quatro crianças: um de 1344, uma criança encontrada em Hesse na corte do príncipe Henrique; o de uma criança encontrada entre ursos nas florestas da Lituânia, em 1694 comentado por Condillac (1715 – 1780) que afirmava não que ela apresentava nenhum sinal de razão: ”caminhava com pés e mãos, não possuía nenhuma linguagem e formava sons que nada se assemelhavam aos do homem”; e finalmente o caso do “pequeno selvagem” de Hanôver estudado na Inglaterra; e os dois selvagens dos Pirenéus encontrados em 1719. Todos eles incapazes da postura bípede como comenta. 1
Segundo antropólogo Lévi-Strauss, correspondem a anormais congênitos, em que se nota muito claramente, terem sido abandonados por essa causa e não desenvolvidos essas características de imbecilidade (termo da época) por causa do crescimento isolado de toda influência social.
Esse autor nos dá ainda o exemplo recente dos meninos–lobo encontrados na índia em 1911 que nunca chegaram a alcançar o nível normal. Um deles – Sanichar – jamais pode falar mesmo adulto. Segundo Kellog em “More about wolf-children of Índia” 1931, duas crianças foram encontradas juntas, uma delas viveu até os seis anos e desenvolveu um vocabulário de cerca de 100 palavras e correspondia a uma idade mental de dois anos e meio o outro, como referido jamais chegou a falar. Cita também um relatório de 1939 (J. B. Foley. American Journal of Psichology vol. 53, 1940) de uma criança encontrada na África do Sul em 1903, que ficou conhecida como criança–babuíno, apresentava uma idade aproximada entre 12 e 14 anos e uma inteligência correspondente à idiotia. Em ambos os casos as circunstâncias da descoberta eram duvidosas. 2
Em março de 2008, após a divulgação de que o livro, best-seller, e o filme "Survivre avec les loups" (Survival with wolves) ver foram uma fraude, houve um debate importante na mídia francesa (nos jornais, rádio e até na televisão) sobre os numerosos casos falsos de crianças selvagens cegamente credenciados: Embora existam numerosos livros sobre este assunto, quase nenhum deles foi baseado em arquivos, os autores usando dúbias informações impressas de segunda ou terceira mão.
De acordo com o cirurgião francês Serge Aroles, que escreveu um estudo geral sobre crianças selvagens, com base em arquivos (L'Enigme des Enfants-loups or The Enigma of Wolf-children, 2007), 3 quase todos estes casos são fraudes escandalosas ou histórias totalmente fictícias.

São esses relatos:
  • Crianças-lobo de Hessian (1304, 1341 e 1344).
  • O menino de Bamberg que cresceu entre bovinos (anterior a 1500).
  • O menino irlandês criado por ovelhas, relatado por Nicolaes Tulp, em seu livro Observationes Medicae (1672). Serge Aroles dá provas de que esse menino era um menino com deficiência grave exibido por dinheiro.
  • As três crianças–urso da Lituânia (1657, 1669, 1694). Segundo o referido autor os arquivos (da rainha da Polônia, 1664-1688)) publicados por Serge Aroles mostram evidências de que estes três casos são totalmente falsos. Houve apenas um menino, encontrado nas florestas, na Primavera de 1663 e levado a capital da Polônia.
  • A garota de Oranienburg (1717).
  • Os dois meninos dos Pirenéus (1719).
  • Peter, o menino selvagem de Hamelin (1724). Uma criança deficiente mental, com anomalias da língua e dos dedos que consta como vivido apenas um ano na selva.
  • Marie-Angelique Le Blanc, a menina selvagem de Champagne (França, 1731)/ floresta de Songy (Marne). Segundo Aroles, que já revelou centenas de documentos relativos a esta menina, e publicou 30 delas em sua biografia (2004), afirma que apesar de certas incoerências quanto a sua idade, origem étnica e localização da ocorrência, é o único caso e verdadeiro de uma criança ter sobrevivido 10 anos nas florestas (entre novembro de 1721 a setembro de 1731), e a única criança - selvagem que conseguiu uma reabilitação intelectual completa, tendo aprendido a ler e a escrever.
  • A garota-urso de Krupina, Eslováquia (1767). Segundo esse autor não se encontraram vestígios dos seus arquivos em Krupina.
  • O adolescente de Kronstadt (1781). Segundo o documento escrito em húngaro publicado por Serge Aroles, é um caso de embuste: O menino, deficiente mental, tinha bócio (hipotiroidismo?) e foi exibido por dinheiro.
  • Victor de Aveyron (1797), retratado no filme de 1969, O Menino Selvagem (L'enfant sauvage), de François Truffaut. Uma vez mais, Serge Aroles deu provas de que este famoso caso analisado por Philippe Pinel (1745 — 1826) e Jean Itard (1774 - 1838) não correspondia a uma verdadeira criança-selvagem.
  • Amala e Kamala, as meninas criadas por lobos, encontrado em 1920 perto de Midnapore, região de Calcutá, na Índia. De acordo com os arquivos encontrados por Serge Aroles, trata-se de uma escandalosa fraude relativa crianças-lobo: Amala, a mais jovem, morreu um ano após ser encontrada e Kamala era uma menina deficiente mental espancada com um pedaço de pau por seu tutor para obter o comportamento de suposto animal com fins de exposição.
  • Ramu, Lucknow, Índia (1954), tomado por um lobo como cria até à idade de 7 anos. Uma vez mais, um embuste, de acordo com Serge Aroles, que conduziu investigações em Lucknow (Índia).
  • Criança-gazela da Síria: Segundo Aroles um rapaz com idade em torno de 10 anos, foi encontrado no meio de uma manada de gazelas no deserto sírio na década de 1950, e só foi capturado com a ajuda de um jipe do exército iraquiano, porque ele podia correr a velocidades de até 50 km/h. Típico boato, como são todas as crianças-gazela descritas.
  • Criança-gazela do Saara (1960): Menino gazela do Río de Oro (Saara Espanhol), descrito por Jean-Claude Armen. Pseudônimo de Jean-Claude Auger (no livro The Saharan Gazelle Boy. Universe Books, New York, 1971). Segundo o referido trabalho de Aroles após investigações sobre este caso, em 1997, e a recolha de testemunhos na Mauritânia, o próprio autor do esta história (JC Armen) reconheceu que ele tinha escrito um livro de ficção.
  • Kaspar Hauser (início do século XIX), retratado no filme de 1974 por Werner Herzog " O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle) Esse adolescente, de cerca de 15 anos, encontrado em Nurembergue recentemente tomado como referência sobre estudo sobre linguagem e realidade por Blikstein, 2003 4 Um dos créditos desse relato, são os escritos do criminalista germânico Feuerbach] (1775 - 1833) autor da obra: Kaspar Hauser. Un delito contra el alma del hombre.
Kaspar Hauser
 
 
Mais sobre Kaspar Hauser:
 
 
 
 Energia Pura


Humanos criados como animais: Coração selvagem


Isolados na floresta, abandonados pela família ou adotados por animais: conheça os incríveis casos decrianças que cresceram longe de outros seres humanos e, depois, tiveram que se reintegrar à sociedade


Flávia Ribeiro | 01/02/2006 00h00

De acordo com a lenda, os gêmeos Rômulo e Remo, filhos de uma mortal com o deus Marte, foram abandonados em um cesto no rio Tibre. Ainda bebês, tinham pouquíssimas chances de sobreviver. Mas uma loba os resgatou, protegeu e amamentou, permitindo que crescessem saudáveis e fundassem a cidade de Roma em 753 a.C. Sem dúvida, um final feliz. Na vida real, entretanto, crianças criadas longe do convívio humano nunca fundaram cidades. Esses meninos e meninas, encontrados em florestas, estradas ou campos, andam de quatro e nus – no máximo, vestidos com trapos. Em vez de falar, grunhem. Na hora de comer, gostam de carne crua, frutas e raízes silvestres. E, mais do que tudo, intrigam profundamente os estudiosos.
O primeiro registro de uma criança selvagem data de 1344: um menino-lobo achado na região de Hesse, na Alemanha, citado pelo filósofo francês Jean-Jacques Rousseau no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Mas o fenômeno tem ocorrências recentes. Um exemplo é o russo Andrei Tolstyk, abandonado aos 3 meses e criado por cães. Foi descoberto numa parte remota da Sibéria em 2004, aos 7 anos, andando de quatro, latindo e cheirando tudo o que via.
Cada caso novo de criança selvagem bota um pedaço de lenha na fogueira de uma das mais persistentes questões da ciência: existe uma natureza humana? “O homem não nasce humano. Ele possui, sim, a capacidade de tornar-se humano. Aprender a falar uma língua, por exemplo, é uma exclusividade humana que só se realiza com o contato com outros que falem”, diz Luci Banks-Leite, professora de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Nem mesmo a postura bípede se desenvolve se alguém não der a mão antes.” Nas histórias de vida dessas crianças, dois fatores saltam logo aos olhos: primeiro, sua impressionante capacidade de sobreviver nas condições mais adversas: enfrentando frio, calor e, muitas vezes, o ataque de animais. Depois, o árduo caminho que percorrem ao ser educadas para que saiam da condição de selvagens e se tornem “civilizadas”. O isolamento, entretanto, costuma deixar marcas profundas em todas elas. “Algumas perdas são irreversíveis”, diz Luci.
A professora é uma das organizadoras de A Educação de um Selvagem, livro que discute o processo pedagógico do francês Victor, o Selvagem de Aveyron, encontrado abandonado no fim do século 18. Diferentemente de algumas histórias semelhantes que parecem ser lendas ou invenções de charlatães, o caso de Victor é bem documentado. O mesmo ocorre com o alemão Kaspar Hauser e a indiana Kamala de Midnapore. Juntos, representam os três principais tipos de criança selvagem: a que viveu isolada de outros seres humanos, a que foi adotada por animais e a que permaneceu confinada.
Filho do isolamento
A mais célebre criança selvagem inspirou inúmeros livros (alguns científicos, outros nem tanto) e teve sua vida levada para as telas de cinema pelo diretor francês François Truffaut no belo O Garoto Selvagem, de 1969. Foi conhecido primeiro como Selvagem de Aveyron e, mais tarde, chamado de Victor pelo médico e educador francês Jean Itard, que se encarregou de sua criação. O menino foi encontrado por caçadores em 1799, com cerca de 12 anos, vagando por bosques na França. Estava nu, sujo, mordido e arranhado, se alimentava de nozes e raízes. Tinha 23 cicatrizes causadas por mordidas de animais e outra, no colo, por uma provável facada. Andava trotando, farejava o que lhe davam, roía os alimentos, amava os campos e tinha aversão a usar roupas e a comer alimentos cozidos. Não falava, apenas emitia sons guturais. Seus olhos não se fixavam ou demonstravam expressão. Seu tato, olfato e audição eram aparentemente insensíveis.
Nunca se soube se Victor se perdeu ou foi abandonado por sua família. Sabe-se apenas que viveu em completo isolamento. Foi levado a uma instituição nacional de surdos-mudos, onde Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria moderna, o diagnosticou como “acometido de idiotia” e, portanto, não suscetível à socialização e à instrução. Mas Jean Itard discordou de seu mestre e resolveu educar ele mesmo o menino. Escreveu dois relatórios sobre seus progressos: um em 1801, após um ano de trabalho com ele, e outro em 1806. No primeiro, afirma que os hábitos de Victor mostravam as “marcas de uma vida errante e solitária” e demonstravam que ele tinha passado pelo menos sete de seus 12 anos no isolamento. Segundo o médico, o menino dava aos cientistas a incrível oportunidade de “determinar quais seriam o grau de inteligência e a natureza das idéias de um adolescente que, privado desde a infância de qualquer educação, tivesse vivido inteiramente separado dos indivíduos de sua espécie”.
Itard é considerado o pai da educação especial e um precursor da psicologia infantil por seu inovador trabalho com Victor. Mas, apesar de estar à frente de seu tempo, cometeu um erro. O médico, que apostou na disciplina e nas relações sensoriais de causa e efeito para educar o menino, deixou de lado as emoções. “Itard não percebeu o potencial do convívio. O tempo que passava com Victor era apenas o das experiências educacionais que fazia com ele. Dá um passo, inova, é ousado, mas ainda é limitado por não perceber a importância das relações pessoais”, afirma Izabel Galvão, professora de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e também organizadora de A Educação de um Selvagem.
Madame Guérin, a governanta que cuidou de Victor, foi quem estabeleceu com ele uma relação propriamente pessoal. “Até certo ponto, o tratamento que Itard impôs trouxe resultados, mas foi domesticador. Já o de Guérin foi humanizador”, diz a psicóloga Renata Guarido, professora da USP. Em contato com os dois, Victor, ao longo dos anos, tornou-se um rapaz de aparência normal. Aprendeu a mostrar as coisas de que gostava, a sorrir, a pedir e a dar carinho. Mas frustrou Itard, pois jamais aprendeu a falar articuladamente. Era capaz apenas de dizer uma ou outra palavra, como lait (“leite”, em francês). Morreu aos 40 anos.
O choro da menina-loba
Como os lendários irmãos Remo e Rômulo, Kamala e Amala de Midnapore também foram criadas por lobos – o tipo de bicho que mais acolhe humanos (veja quadro na página anterior). Em 1920, o reverendo Joseph Singh viajava numa missão espiritual pela Índia quando soube da lenda de duas meninas que viviam com uma matilha daqueles animais. Intrigado, partiu atrás delas. Ao encontrá-las, ficou impressionado: ambas andavam de quatro e, antes de sair da caverna em que se escondiam, colocavam só a cabeça para fora e olhavam desconfiadas para os lados. Capturadas, foram encaminhadas ao orfanato da cidade indiana de Midnapore. O reverendo Singh, que as criou junto com sua mulher, era o diretor da instituição.
Kamala tinha cerca de 8 anos e Amala, apenas 1 ano e meio. Carnívoras, bebiam água lambendo e tinham horror à luz. Passavam o dia todo arredias, mas à noite uivavam e grunhiam. A menor sobreviveu dez meses longe dos bosques e morreu, um ano depois, de nefrite (inflamação nos rins). Foi quando Kamala chorou pela primeira vez desde que chegara ao orfanato. “Ela teria chorado se Amala tivesse morrido na selva? Ou será que, no tempo em que conviveu com humanos, a menina aprendeu a chorar?”, questiona a professora Luci. “São perguntas sem resposta. Mas Kamala pode, sim, ter aprendido. O choro e o riso não são apenas reflexos do ser humano. São construídos socialmente.”
A menina mais velha ainda viveu por nove anos. Na época em que morreu, com a mesma doença da irmã, Kamala era uma adolescente de cerca de 17 anos. Havia passado a andar ereta e adquiriu um vocabulário de 50 palavras. Chamava a senhora Singh de “mamá” e chorava com sua ausência. Conversava com todos, inclusive com os médicos. Sua evolução, conseguida com os cuidados do casal Singh, levou o sociólogo francês Lucien Malson, autor de As Crianças Selvagens, a concluir que Kamala não tinha nascido com problemas mentais. “Pelo contrário, a comparação entre seu nível mental aos 8 anos e o que chegou a demonstrar mais adiante manifesta, com toda a evidência, que devia sua triste condição à falta de uma vida familiar em sua infância.”
Pão, água e morte
Em 1828, um trôpego rapaz de 16 anos, estranhamente vestido, apareceu na porta de uma casa. Levava em seu bolso um lenço com suas iniciais, um rosário, orações, um pouco de ouro em pó e uma carta dirigida ao capitão do 4º Esquadrão do 6º Regimento da Cavalaria de Nuremberg, na Alemanha. Na carta, uma mulher dizia que aquele era seu filho e que o pai era um membro da Cavalaria. Havia junto outro bilhete, escrito por alguém que dizia ser um pobre operário a quem o rapaz fora confiado. As ordens tinham sido bem diretas: manter o jovem confinado.
O adolescente falava, mas só duas frases eram compreensíveis: “eu não sei” e “eu gostaria de ser um cavaleiro como meu pai foi”. Também lia e escrevia rudimentarmente. Com uma pena, mostrou ser capaz de rabiscar seu nome: Kaspar Hauser. Suas origens nunca foram descobertas, mas uma das possibilidades é rocambolesca: ele seria o príncipe de Baden, filho do grão-duque Carlos de Baden e da grã-duquesa Estefania de Beauharnais. Mas, como outros nobres germânicos não queriam que a coroa seguisse nessa linhagem, teriam arrancado o filho do casal e o confinado no porão. Assim como ocorreu com Victor de Aveyron, sua história resultou em inúmeros livros e em um filme, O Enigma de Kaspar Hauser, dirigido pelo alemão Werner Herzog em 1974.
O estranho rapaz foi recolhido por soldados e, mais tarde, levado a morar com o professor George Daumer e a passar temporadas na casa do jurista e filósofo Alselm von Feuerbach, que escreveu sobre ele Beispiel eines Verbrechens am Seelenleben des Menchen (ou “Exemplo de um atentado à vida anímica do homem”, não publicado no Brasil). Nele, conta que Kaspar andava tropeçando, chorava muito e tinha medo de tudo, até de certas cores, como preto e amarelo. Amava os cavalos, trocava qualquer alimento por pão e água e falava de forma estranha. “Poder-se-ia tê-lo tomado por um habitante de outro planeta que milagrosamente chegou à Terra”, escreve Feuerbach.
Kaspar não viveu em total isolamento, como Victor, nem apenas em companhia de animais, como Kamala e Amala. Por isso, ficou mais fácil descobrir parte de sua história, revelada por ele mesmo. Soube-se, por exemplo, que passou a maior parte de sua vida preso em um porão escuro e silencioso, recebendo comida – na maioria das vezes pão e água – por uma fresta. Através dela, ouvia a voz do “Homem”, que lhe ensinou algumas palavras escritas e faladas. Em três anos vivendo na casa de Daumer, Kaspar já tinha um belo vocabulário, embora nunca tenha se ajustado à vida em sociedade. Saiu de casa, tentou viver em outros lugares. Sofreu dois atentados a faca. Sobreviveu ao primeiro, mas faleceu no segundo, aos 22 anos. O autor do crime, segundo se imaginou na época, teria sido o tal “Homem” que o havia mantido trancafiado.

A arte imita a selva

Não faltaram exemplos reais para inspirar os selvagens da ficção
Pyrénée foi criada por um urso e vive nas montanhas dos Pirineus, na França. Personagem principal da aventura que leva seu nome, escrita por Régis Loisel e Philippe Sternis, ela tem uma história impressionante. Assim como a Garota de Issaux, que existiu mesmo e provavelmente serviu de inspiração aos dois autores. A menina tinha 16 anos quando foi encontrada, em 1719, e vivia naquela mesma região montanhosa desde os 8, quando se perdeu durante um passeio. Como a maioria dos jovens selvagens, mal falava e alternava o andar bípede com o quadrúpede. Os ursos, entretanto, não estão entre os que mais costumam acolher humanos. O recorde fica com os lobos: há registros de 25 casos de crianças encontradas vivendo entre eles (acredita-se que o instinto materno de lobas com filhotes justifique o carinho delas por crianças perdidas). O personagem Mogli, inspirado nessas histórias, ficou conhecido no mundo todo após se transformar em animação dos estúdios Disney. Mas, antes disso, o menino-lobo figurava na literatura de primeira linha, presente no clássico O Livro da Selva, de Rudyard Kipling, escrito em 1895. Tanto no livro como no cinema, Mogli foi viver em uma vila de humanos e se adaptou rápido (muito diferente do que costuma ocorrer na realidade). Já o personagem Tarzan se deu tão bem na vida selvagem que acabou virando o “Rei da Selva”. O primeiro dos 24 livros sobre ele, escritos pelo americano Edgar Rice Burroughs, foi lançado em 1914. Tarzan é um nobre que, ainda bebê, acaba perdido na selva africana durante a ocupação do continente pelos ingleses. É encontrado por macacos, que o criam como um deles. Sua saga inspirou desde desenhos animados até filmes como Tarzan, o Homem Macaco, de 1932 – com várias continuações, todas com o ator e nadador Johnny Weissmuller (foto) –, e Greystoke: a Lenda de Tarzan, o Rei das Selvas, de 1984. Levado à Inglaterra, o homem-macaco chegou até a ter um romance com a aristocrata Jane. Na vida real, as nove crianças achadas vivendo entre macacos – sete delas na África – passaram por muita dificuldade nas suas tentativas de ressocialização.

Mãe natureza abandonada

Para o bem ou parao mal, é a sociedadeque nos faz humanos
Em 1750, o filósofo iluminista francês Jean-Jacques Rousseau publicou seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, no qual lançou a controversa teoria de que as ciências e as artes corrompem o homem. Naquele livro, ele argumentava a favor de uma “volta à natureza”, defendendo a tese de que “o homem é naturalmente bom”, mas acaba perdendo a bondade inicial conforme avança a civilização. Essa idéia do “bom selvagem” nortearia toda a obra de Rousseau. Quatro anos depois, ele voltaria ao tema no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Aqui ele comenta cinco casos de crianças perdidas, incluindo o menino-lobo de Hesse, encontradoaos 7 anos, e a Garota de Issaux, achada nos Pirineus. Para Rousseau, o fato de esses meninos e meninas andarem de quatro acontecia por uma eventual imitação dos quadrúpedes, e não por características humanas naturais. O “bom selvagem”, na verdade, andaria sobre os dois pés, além de ser inteligente e generoso. Em 1928, Edwin Ewart Aubrey, um filósofo e teólogo escocês, levou a discussão adiante, defendendo a tese de que, para agir como humano, um indivíduo tem que ser criado por humanos. “O homem não nasce como um ser cultural já completo, com instintos inalienáveis, que determinem o curso inevitável de seu desenvolvimento”, disse. A conclusão de Aubrey foi a de que “a ‘humanidade’ do homem aparece no contato social, tornando-se parte do indivíduo”. Os meninos e meninas selvagens encontrados ao longo dos séculos foram, portanto, tolhidos em suas potencialidades humanas (vivessem eles confinados, isolados ou entre animais). “Hoje é mais fácil perceber que as histórias de crianças selvagens demonstram que o comportamento humano não é inato, mas aprendido”, diz a professora Izabel Galvão. “Mas a discussão sobre natureza humana permanece atual, pois entra nos terrenos de biotecnologia, clonagem e robótica.”

Saiba mais

Livros
As Crianças Selvagens: Mito e Realidade, Lucien Malson, Civilização, 1978 - Tradução portuguesa do livro Les Enfants Sauvages, de 1963, faz um inventário de crianças selvagens e analisa seus tipos mais representativos.
A Educação de um Selvagem – As Experiências Pedagógicas de Jean Itard, Luci Banks-Leite e Izabel Galvão (organizadoras), Cortez, 2000 - Tem artigos sobre Victor de Aveyron e seu relacionamento com o educador Jean Itard. No apêndice, traz os dois relatórios sobre o menino.
Wolf-Children and Feral Man, Joseph Singh e Robert Zingg, Harper, 1942 - Sobre as indianas Amala e Kamala, também trata de outros casos e traz, em anexo, o famoso texto de Alselm von Feuerbach sobre Kaspar Hauser.
Site
www.feralchildren.com - O site, em inglês, enumera dezenas de histórias de crianças selvagens, com dicas de leitura sobre elas.


 
 
 
Crianças Selvagens
Capítulo de
"Caos, os Panfletos do Anarquismo Ontológico"
(parte um de "Z. A. T.")


O INSONDÁVEL CAMINHO LUMINOSO da lua cheia —
meia-noite em meio a Maio em algum Estado que começa
com "I", tão bidimensional que dificilmente pode-se
dizer que possui alguma geografia — os raios tão
prementes & tangíveis que precisas traçar as nuances
para pensar com palavras.

Está fora de questão escrever para as Crianças Selvagens. Elas pensam em imagens — para eles a prosa é um código ainda não completamente digerido & ossificado, assim como nunca é completamente confiável para nós.

Podes escrever sobre eles, para que outros que perderam a cadeia prateada possam seguir adiante. Ou escrever por eles, fazendo da ESTÓRIA & do EMBLEMA um processo de sedução dentro de tuas próprias memórias paleolíticas, um bárbaro engodo para a liberdade (caos como o CAOS o entende).

Para esta espécie do outro mundo, ou "terceiro sexo", les enfants sauvages, a fantasia & a Imaginação ainda permanecem indiferenciadas. Um BRINCAR desenfreado: ao
único & mesmo tempo a fonte de nossa Arte & de todos os mais raros eros da raça.

Abraçar a desordem como manancial de estilo & depósito voluptuoso, ponto fundamental de nossa civilização alienígena & oculta, nossa estética conspiratória, nossa espionagem lunática — esta é a ação (vamos encarar os fatos) tanto de um artista de qualquer tipo como de alguém de dez ou treze anos de idade.

Crianças cujos sentidos clarificados lhes revela uma brilhante feitiçaria de lindo prazer que reflete algo ferino & obsceno na natureza da própria realidade: anarquistas ontológicos naturais, anjos do caos — seus gestos & odores corporais espalham a seu redor uma floresta de presença, uma completa hiléia de presciência com cobras, armas ninja, tartarugas, xamanismo futurista, incrível bagunça, mijo,
fantasmas, luz do sol, punheta, ovos & ninhos de aves — agressão exultante contra os adultos ranzinzas daqueles Planos Inferiores tão impotentes para englobar tanto epifanias destrutivas quanto criações sob a forma de extravagâncias, frágeis mas
suficientemente afiados para fatiar o luar.

E ainda assim os habitantes destas dimensões inferiores de águas revoltas realmente acreditam que controlam os destinos das Crianças Selvagens — & cá em baixo, tais crenças nocivas efetivamente esculpem a maior parte da substância do cotidiano.

Os únicos que realmente desejam compartilhar o destino daninho daqueles fugitivos selvagens ou guerrilhas menores ao invés de ditá-las, os únicos que podem entender que acalentar & desatrelar são o mesmo ato — estes são em sua maioria artistas, anarquistas, pervertidos, hereges, um bando à parte (tanto um do outro quanto do mundo), ou capazes de se encontrar apenas como devem crianças selvagens, cravando olhares atentos através de uma mesa de jantar enquanto os adultos tagarelam por detrás de suas máscaras.

Muito jovens para estarem em uma gangue de motoqueiros —fracassados, dançarinos de rua, poetas escassamente pubescentes de cidadezinhas planas e perdidas — um milhão de fagulhas caindo dos foguetes de Rimbaud & Mogli — esguios terroristas cujas bombas
espalhafatosas são condensadas de amor polimórfico & dos preciosos quinhões de cultura popular — pistoleiros punks sonhando em furar suas orelhas, ciclistas animistas deslizando na penumbra de estanho através de ruas ponteadas por flores acidentais — nudistas ciganos fora de temporada, sorridentes e dissimulados ladrões de totems de poder, escassos trocados & facas com lâmina de pantera — nós os sentimos em todos os lugares — nós publicamos esta oferta para negociar a corrupção de nossa própria lux et gaudium por sua perfeita torpeza gentil.

Então entenda: nossa realização e nossa liberação dependem da deles — não porque nós arremedamos a Família, aqueles "avarentos de amor" que mantêm reféns para um futuro banal, nem o Estado que nos educa para afundar sob o horizonte de eventos de uma "utilidade" tediosa — Não — mas porque nós & eles, os selvagens, somos imagens uns dos outros, unidos & confinados por aquela cadeia prateada que define o âmbito da
sensualidade, da transgressão & da visão.

Dividimos os mesmos inimigos & nossos meios de fuga triunfante são também os mesmos: um jogo delirante e obssessivo, fortalecido pelo brilho espectral dos lobos & suas crianças.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Cenas do Ensaio. Amor Talhado.

 Amor Talhado   http://www.youtube.com/watch?v=hAeuU-T8nP4

Definições e "imagens interessantes" interessantes:

Envolvido em um pano qualquer. Fantasma. Corpo amortalhado.
Que se amortalhou; envolvido em mortalha ou algo à guisa de mortalha.
Vestido com muita modéstia, ou como quem despreza as coisas mundanas.

No interior do Ceará, define-se amortalhado aquele pecador que confessar
ao padre seus pecados, e se esses forem considerados pecados capitais, a ele
compete vestir-se de branco e vagar a noite. Quantas noites determinar o vigário.
Mortalha: roupa de defunto, costurada a mão geralmente confeccionadas em
tecidos brancos.
 
"Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os vêem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam."

Jack Kerouac.
 
Assista cena de "AMOR TALHADO".
 
No link abaixo você encontra quatro videos de trechos do ensaio de Amor Talhado.
 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Um pouquinho de Kazuo pra inspirar.






Kazuo OhnoO Dançarino do Invisível
Irion Nolasco 
(para a Revista Nicolau)
 
 
 
Durante alguns segundos, o público, em silêncio e na mais completa escuridão,
aguarda o início do espetáculo, no Théâtre du Lierre, em Paris. De repente,
poderoso spot derrama luz intensa e branca sobre uma figura sentada na
primeira fila da platéia. Sua aparência oscila entre o grotesco e o sublime:
Kazuo Ohno, 87 anos, o mais velho bailarino do mundo. Usa um vestido longo,
 de crepe de seda de cor pálida, chapéu de abas transparentes, sapatos de salto
 e luvas compridas. Lentamente, inicia a caminhada em direção ao palco, onde,
 uma vez mais, exorciza e é possuído por seu mito, sua inspiração:
 "La Argentina", bailarina espanhola dos anos vinte. É Kazuo Ohno em
sua criação Admiring La Argentina. Em alguns momentos do espetáculo
não se vê mais Kazuo Ohno, mas o fantasma que ele anima. De certa
forma, Ohno dança desafiando a morte e chega a uma relação tão próxima,
íntima e desesperada com ela, que acaba adquirindo o rosto de sua adversária.
Rude, essencial, espontâneo, o Butoh se apõe tanto às formas de dança
tradicional japonesa como à dança ocidental. Seu princípio fundamental é o
desejo de aniquilar o corpo, de torturá-lo, para que ele possa revelar sua verdade. 
A carne é negada para ressaltar a tensão do espírito.

Irion Como você começou a dançar?
Kazuo Ohno – Foi quando vi "La Argentina", em 1929. Sua dança era excepcional. 
Tão excepcional que se tornou difícil para mim começar a dançar. Somente cinco anos
 depois que a vi, e também porque eu trabalhava como professor de educação
física e queria ensinar dança na escola, é que comecei realmente a estudar. 
Durante esses cinco anos ela nunca me saiu do pensamento. 
Hesitei muito em começar porque não me achava preparado. 
Sempre achei que sua arte era uma autêntica ponte entre o céu e a terra. 
Trabalhei anos como professor, sempre ensinando movimento e dança. 
Mas ainda hoje tenho dúvidas se a dança é algo que possa ser ensinado. 
Acho que é alguma coisa que alguém tem que descobrir por si mesmo. 
Hoje me sinto como um estudante, não como um mestre. Eu não ensino dança,
 estou sempre na posição de aluno. Mas só cheguei a essa conclusão após ter
dançado por muitos e muitos anos. Na verdade, a dança que alguém pode
ensinar e o outro aprender não é tocante, não atinge a emoção das pessoas.

Irion Além de "La Argentina", quem mais o influenciou?
Kazuo Ohno – Mary Wigman, que me transmitiu o que é a beleza.

Irion Em algum momento de sua formação você teve aulas de dança

clássica japonesa?
Kazuo Ohno – Cresci vendo as danças tradicionais da cultura japonesa. 

Observava muito, mas nunca aprendi essas danças. O que realmente
me fascinou, desde a infância, e que me direcionou para a dança, foi
a música clássica ocidental. Compositores como Chopin, Bach e muitos outros.

Irion Algumas pessoas comparam o seu trabalho com as danças do

teatro clássico japonês, como o Nô e o Kabuki. É um mal-entendido?
Kazuo Ohno – Quando a platéia ocidental recebe esse tipo de impressão,

acho que, de qualquer forma, está no bom caminho. Mas vamos pensar
um pouco sobre as diferenças entre a cultura ocidental e a cultura japonesa.
Acho que, para os ocidentais, a cultura japonesa é muito fechada. Mas eu cresci
no meio da cultura tradicional japonesa. Hoje creio que a principal diferença
entre nós é que os ocidentais procuram explicar as coisas logicamente,
intelectualmente, enquanto que nós sentimos através da alma. Se a platéia
ocidental relaciona o meu trabalho com o Nô e o Kabuki, somente pela
aparência, já é um bom começo para entender o Butoh, mas não é o que se
poderia chamar de um entendimento profundo, completo. É claro que tanto
o Nô como o Kabuki também nasceram da mais profunda maneira de agir
e pensar do povo japonês, ou seja, a busca constante da transcendência,
da espiritualidade. De qualquer forma, temos que entender juntos o Butoh,
temos que encontrar juntos esse relação de comunicação. Não é uma única
via: o performer dá a impressão e o público recebe essa impressão. É uma
relação mútua, viva, e temos que achar juntos a sua significação.

Irion Você ainda pratica a dança?
Kazuo Ohno – Mais importante que a prática é achar o próprio caminho, tendo

sempre uma atitude espiritual frente ao trabalho. É preciso que essa atitude seja
muito clara e muito profunda, mas explicar isso em palavras é uma coisa muito difícil.

Irion O que você diria sobre o seu trabalho?
Kazuo Ohno – Não me interesso pelo pensamento lógico, racional. Estou

preocupado em questionar o espírito. Acho que a própria vida inclui algo
de louco, de incompreensível, que escapa ao pensamento racional. Por exemplo,
no momento da concepção existem milhões de espermatozóides tentando fecundar
um óvulo, mas apenas um consegue. É puro acaso. É a mais completa desordem. 
Não há organização alguma. Sob o ponto de vista racional, isso é louco. Entretanto,
sob o ponto de vista espiritual, essa imponderabilidade, esse acaso, é muito importante. 
Quando a arte tenta surgir do pensamento lógico, racional, não tem sentido. A única
maneira de fazê-la aflorar é através do espírito. Penso que a arte é o nível mais alto
a que pode chegar a expressão humana. E o seu principal objetivo é transformar
a vida. A arte é sempre profundamente relacionada com a vida e a morte, a alma
 e o corpo. Algumas vezes é impossível ao pensamento lógico compreender isso. 
A arte tenta desvendar o mistério de viver e morrer.

Irion Como você cria suas performances?
Kazuo Ohno – Através de improvisações, a partir de uma idéia. Na verdade, crio

a partir de uma profunda necessidade de expressão. Começo por refletir sobre a vida. 
Atualmente, estou interessado em ouvir a natureza, em escutar o universo. Penso
que a natureza não é escrava do homem. Se não houver uma relação homem-natureza,
o ser humano não poderá sobreviver, nem seu trabalho existir. Vejo a dança de
 "La Argentina" como uma parte da criação entre o céu e a terra, um reflexo
dessa união. Meu trabalho sempre começa e termino dentro dessa concepção
espiritual. Todo fenômeno universal tem sempre alguma coisa a ver com a alma. 
Toda manifestação natural, por mais ínfima que seja, representa alguma coisa
espiritual. Assim, somos encorajados a pensar em Cristo, no amor, na vida e na morte.

Irion Você é religioso?
Kazuo Ohno –Sim, sou cristão. Sempre fui consciente do lado mau da minha

personalidade. Assim que, através da religião, tento corrigir minhas atitudes.

Irion Nos seus espetáculos, o que chama a atenção é o forte conteúdo improvisacional.

  É certo?
Kazuo Ohno – Todo mundo deseja ter um fresh feeling todos os dias. Eu também. Mas,

ao mesmo tempo, é difícil contar com isso. Sinto que não sou capaz de ser uma pessoa
nova todos os dias. Mas também não posso ser o mesmo de ontem, hoje e amanhã. 
Neste sentido, não posso trazer para hoje o que eu era antes, porque é um outro dia,
sou uma outra pessoa, nem outro tempo. Sim, durante meus espetáculos faço improvisações. 
Mas, para improvisar, é preciso ter trabalhado muito antes. Só depois é que se pode f
azer uma improvisação. As minhas performances nunca estão terminadas. Para mim é
impossível trazer para o palco algo concluído, pronto. Meus espetáculos são sempre
inacabados, incompletos. Mesmo que eu planeje minuciosamente uma coreografia,
simplesmente não consigo deixar de improvisar. Entre o nascimento e a morte também
se improvisa muito.